quarta-feira, janeiro 05, 2005


Silêncio por 2 minutos

O tsunami do Sudeste Asiático foi uma catástrofe, e tal. Uma onda gigante varreu tudo à sua passagem. Tendo em conta as consequências deste desastre, seria de supor que as palavras escolhidas para o descrever fossem cuidadosas. Assim aconteceu, salvo raras excepções. Por exemplo, ninguém no seu perfeito juízo diria, momentos depois da trágica ocorrência, que o tsunami tinha de facto origem numa prova de saltos para a água da equipa japonesa de Sumo (que aliás, através do seu representante, veio a público descartar-se de qualquer responsabilidade). Mas frases foram proferidas, como "... agora é preciso que haja uma onda de solidariedade... " (RTP1), ou então "...o paraíso que era dantes Phi Phi ... " (Pedro Coelho – SIC), frases que dariam alguns bons exemplos do que se deve evitar se se fosse jornalista, e estivesse em directo para milhões de telespectadores, que não estão propriamente dispostos à galhofa enquanto vêm um bebé de 8 meses pendurado numa palmeira.
Há algo que me escapa também quando se dá as estatísticas da calamidade: a certa altura, estavam 8 portugueses desaparecidos, e 2 incontactáveis. O que significa isto ao certo? Haverá aqui alguma incompatibilidade? Terão desaparecido oito pessoas que levavam o telemóvel, ou haverá duas que se sabe muito bem onde estão, mas esqueceram-se do carregador?
Devido à cobertura exaustiva levada a cabo pelos media, sabemos minuto a minuto o número de desaparecidos, as localidades mais afectadas, o esforço feito pelas O.N.G.s para dar apoio aos que mais necessitam, os constantes e misteriosos casos de mantimentos que desapareceram das missões humanitárias internacionais (na verdade foi só um caso, e a missão humanitária era a de Portugal), e as entrevistas na hora feitas aos turistas (como foi o caso de Dulce Ferreira, turista portuguesa entrevistada pela SIC Notícias, que já tinha as férias marcadas para a Tailândia, e que não tinha ficado nada preocupada com o que tinha acontecido, porque os pais que lá estavam lhe haviam dito que, apesar de "uns tsunamis e umas coisas", estava tudo bem, e que apesar de agora já não ir ter todas as condições de férias que iria ter, estava contente porque iria ver as coisas mais ao natural, como elas são).



Os turistas são um povo engraçado... O tsunami matou, segundo as últimas contagens, 155.000 pessoas, e muitas mais estão desaparecidas no mar, nas terras alagadas, ou sob os escombros. Mas muitas das que não morreram com a onda, terão uma forte probabilidade de perecer de fome ou desidratação. Se conseguirem sobreviver à fome e à sede, terão ainda de resistir às epidemias (que surgem naturalmente após estas catástrofes). Em algumas regiões, muitas das minas terrestres que estavam já localizadas, mapeadas e devidamente identificadas, foram deslocadas pela enorme massa de água, trazendo mais emoção às próximas caminhadas. E por fim, se alguém tiver a sorte de sobreviver a todo este conjunto de adversidades, terá que coabitar com os jacarés das regiões mais a Norte, que devido à subida das águas, resolveram aventurar-se a Sul, onde estão as pessoas. Mesmo assim, ainda há turistas a pagar para visitar os lugares da tragédia. São os mesmos que têm a colecção toda do "Holocaustoos bastidores da carnificina, agora finalmente em DVD".
Cá em Portugal o povinho não se conteve, e teve que ter também os seus 3 minutos de silêncio. Diz-se que a fama tem 15 minutos, o famoso programa da CBS tem 60, e os momentos de silêncio têm só 1. Quem decide quantos minutos se devem fazer? Estará isso escrito em algum lado? Até agora ainda só vi fazer-se 1 ou 3 minutos de silêncio: 1 minuto quando morre alguém importante, 3 minutos para quando morre muita gente, normalmente vítimas de uma catástrofe. A pergunta óbvia impõe-se: então e para quando os 2 minutos? Quando morrem duas ou mais pessoas importantes? Quando morre muita gente, mas não vítima de uma catástrofe (por exemplo, quando é concedido o direito à eutanásia a muitos velhinhos em sofrimento atroz, e que resolvem todos fazê-la ao mesmo tempo, num acto simbólico – eu sei!, é impossível achar uma situação de morte generalizada que não seja trágica...)? E se morrer o Eusébio, vítima de um descarrilamento de um comboio devido a um furacão? Uma figura da sociedade, duas calamidades... quantos minutos?
A Federação e a Liga de Clubes regem-se no entanto por regras diferentes das do resto da sociedade, e por isso os jogadores de futebol na próxima jornada da Superliga só farão um minuto de silêncio. Isto porque, se fossem três os minutos de silêncio e introspecção, talvez os jogadores conseguissem consciencializar-se porque razão o estavam a fazer, e fossem assim levados por uma corrente (mais uma boa escolha de palavras...) de boa vontade, que os impediria de proporcionar um bom espectáculo (nomeadamente dar cacetada, forjar faltas e insultar o árbitro).
Em Portugal os 3 minutos de silêncio começaram às 11 da manhã. Era o que estava originalmente previsto, e pelo menos foi o que aconteceu na SPORT TV, que colocou um fundo negro com um relógio no meio, e a mensagem "Pelas Vítimas do Tsunami". Nos outros canais, nesse preciso momento, havia regabofe e folguedo. Mais tarde, explicaram na SIC que afinal os 3 minutos de silêncio só seriam ao meio-dia, porque se resolveu que a Europa do Leste e a Europa Ocidental não festejariam todas à mesma hora. Assim sendo, ao meio-dia lá se fizeram os 3 minutos de silêncio... novamente. A cobertura televisiva esteve ao seu nível (desastrosa). A RTP1 revelou desconhecer toda esta resolução dos 3 minutos, e começaram 30 segundos mais tarde do que a restante concorrência. Foi o meio minuto que abalou a nação. Entretanto, iam mostrando imagens do silêncio dos representantes da Assembleia da República, do Presidente da República... enfim, gente que estava melhor se fizesse 3 anos de silêncio.

A certa altura os 3 minutos acabaram, mas ninguém se ralou muito com isso, e ali ficaram eles mais 2 minutos caladinhos até alguém avisar os altos responsáveis deste país que o tempo já tinha passado (e ainda se fala da pouca produtividade dos trabalhadores portugueses, que assim e assado, e que aproveitam qualquer situação para não trabalharem... somos governados por gente que desconhece quantos segundos existem em 3 minutos!).
Na SIC optaram por mostrar imagens do silêncio registado numa sala de aula da Universidade Católica do Porto: havia alunos a olhar para o tecto, outros concentrados com as mãos em oração (certamente a pedirem que o silêncio se prolongasse até o final da aula), outros agarrados ao telemóvel, e ainda outros a olharem para os primeiros.
Na TVI, juntaram o pessoal da redacção no estúdio e calou-se tudo. Entretanto mostravam imagens das ruas de Portugal e arredores, onde o silêncio foi substituído pelo... não-silêncio (também conhecido como ruído), especificamente conversas de rua, gritos, buzinas, tudo o que fizesse algum barulhinho audível aos microfones das câmeras. Houve um transeunte que chegou a questionar "Isto é alguma comemoração?" Que pândego...
A RTP1 tentou depois redimir-se, e passou algumas reportagens de rua, feitas às pessoas que (tal como a RTP) não sabiam o que se estava a passar ("ai vai-se fazer silêncio durante 3 minutos?") ou que não sabiam a que horas iria este momento ocorrer. Uma senhora que acendia velas no Porto ficou muito revoltada pelo facto de ninguém ter cumprido a regra dos 3 minutos, e culpou os governantes dizendo que se devidamente avisadas, as pessoas fariam o silêncio porque "...o povo português é uma pessoa muito sensível...". Seguidamente, a RTP1 entrevistou também uma rapariga de uma caixa registadora (em Lisboa) que disse não ter podido parar para fazer os 3 minutos de silêncio, porque "tivemos mesmo que atender os clientes... mas vai haver outro ao meio dia!". Enfim, em resumo, quem esteve mesmo bem foi a SPORT TV, que ao meio-dia fez o mesmo que tinha feito às 11 horas, e voltou a colocar o ecrã negro e a fazer mais 3 minutos de silêncio. Fez então um total de 6 minutos de silêncio com um intervalo pelo meio, para compensar os minutos de ponderação que não irão ser feitos pelos jogadores.

Eu quase que respeitei o momento de silêncio. A sério!, mas Portugal e os portugueses não mo permitiram. Malvados sejam!...

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