(depois não digam que não avisei)
Há pessoas que são boas por natureza. Eu não sou uma delas. Essas pessoas dão mau nome a pessoas como eu.
Quando confrontado com pessoas menos afortunadas que eu, não reajo sempre da mesma forma: às vezes sou uma besta, mas noutras alturas sou pior do que isso. Talvez pareça insensível, talvez exagerado, mas seguem-se algumas histórias para daí retirarem as vossas próprias conclusões.
No primeiro ano em que fui para a escola, o professor decidiu sentar na minha carteira, mesmo ao meu lado, um rapaz chamado Richard, que para além de um notório atraso mental, tinha também um fraco controlo do esfíncter uretral, o que naturalmente levava a poças de mijo no chão da sala. O professor, sabendo disto, fazia orelhas moucas sempre que me queixava do pequeno pivete. Para resumir a história, houve um dia em que o cheiro era de tal forma, que me levantei da carteira e recusei-me a sentar enquanto ele estivesse ali ao meu lado. Para todos os colegas que não sabiam donde vinha aquele odor, ficaram a saber que tinha origem no mijão.
Infância do Carlitos = colónia de férias. Não por vontade própria (deixemos esse ponto bem assente), mas porque os meus pais, na sua imensa sabedoria, cedo souberam que eu era do tipo "puto insuportável", e aproveitavam qualquer oportunidade que tinham para se verem livres de mim. Num desses longos Verões, o grupo de miúdos insuportáveis teve a companhia de um menino autista ou coisa do género (Marco, se a memória não me falha). Apesar de ter muitos comportamentos que nos eram estranhos, não comia protector solar. Até eu o ter provocado. O que, provavelmente, foi uma má ideia. Para ele, entenda-se.
No meu 8º ano estudantil, a minha turma teve não um, não dois, mas TRÊS Kinder Surpr... bom, na verdade foram só dois, o Ulisses e a Fátima. O Ulisses era um rapaz anafadito (cento e poucos quilos), com dificuldades em pronunciar os "R", e cego. Já falei dele neste blog, e quem me conhece sabe algumas dos episódios mais caricatos. Permitam-me que vos clarifique que, sempre que faço uma boa-acção (involuntariamente, não nos iludamos), e julgo estar mais perto do Paraíso, lembro-me do que o pobre do Ulisses passou às minhas custas, e caio na triste realidade: ir para o Purgatório já era um grande feito. E do Ulisses estamos falados (o peso na consciência é avassalador).
A Fátima era bem mais velha que os restantes elementos da turma, e sofria de paralisia facial (principalmente na metade inferior do rosto). Consequentemente, falava com muita dificuldade, e largava um rasto de baba sempre que o fazia. Literalmente. Em princípio seria fácil ter pena dela. Em princípio, disse eu, porque na prática era complicado sentir qualquer coisa para além da repulsa, justificada também por se tratar de uma mentirosa compulsiva, e (ainda pior!) cleptomaníaca reincidente. As coisas começavam a desaparecer da sala de aula, e foi só após uma chapada de um colega mais irado (obrigado por não terem imediatamente pressuposto que fui eu que a dei) que a rapariga confessou. Numa certa aula de português, a professora escolheu vários grupos para resolver um exercício. Como ninguém ficava com a Fátima, a vítima seria aquele rapaz que chegava sempre atrasado à aula por ter estado a jogar à bola no intervalo. Confrontado com tal evidência, o meu nível de tolerância foi sendo testado a cada minuto que passava. A cada pingo de baba que caía na mesa, eu contornava-o com um lápis, a fim de ser mais facilmente identificável. Apesar de gentilmente lhe pedir para limpar a mesa (ela recusava fazê-lo), e dos constantes pedidos ignorados pela professora, mantive-me sentado até um mega-pingo de baba me ter caído no caderno. Ela não limpava, a professora não queria saber. Relaxadamente, levantei-me da carteira e saí da sala. Voltei com 2 kg de papel higiénico (ou quase), e perguntei novamente se ela não queria limpar a baba. A resposta não mudou, e pacientemente limpei o caderno (enquanto colegas e professora assistiam em pasmo). Após a degradante limpeza, dei um novo uso ao papel higiénico, enfiando-o pela goela abaixo da Fátima (justiça lhe seja feita, porque tal só foi conseguido após algumas tentativas). A sensação de ser expulso da sala ao som de aplausos foi recompensante.
Vila Real, 2000. Enquanto participava num Congresso de Veterinária, fiquei hospedado em casa de uma prima minha, que não morava sozinha. Numa certa noite, decidi voltar mais cedo a casa. Aproveitei o facto de ainda ninguém ter chegado da festa, e fui tomar banho. Depois disso, deu-me a volta à barriga, e dei uso à porcelana da casa-de-banho. Muito uso. Descansadamente sentado, deixando a natureza seguir o seu curso, ouvi barulhos em casa. E de repente, bateram na porta do W.C.: alguém precisava de entrar urgentemente. Despachei-me o mais rapidamente possível, e do outro lado da porta encontrava-se uma rapariga que tinha bebido ao ponto de mal se aguentar em pé (2 rapazes sustinham-na). Uma das peculiaridades da moça era a falta de coordenação dos olhos. Enquanto um mirava à minha esquerda, o outro (qual camaleão prestes a atacar) apontava para todo o lado. De seguida a camaleona abriu a goela, e usou a mesma porcelana onde eu tinha acabado de estar sentado nos últimos 20 minutos. Uns anos mais tarde, num ENEM Vet qualquer, lá estava ela de novo, a bombar. O fotógrafo oficial deste Encontro Nacional afixou, numa parede acessível a todos, as fotos tiradas ao longo de 3 dias de forrobodó. Uma analogia rápida: sabem aqueles quadros que, por mais que nos movamos, nunca nos conseguimos desviar do olhar da pessoa pintada? As fotos desta rapariga vão dar ao mesmo, mas não pelas mesmas razões. E enquanto me questionava (em voz alta) em quantas direcções estaria ela a observar-me naquelas fotografias, eis que lá estava ela, atrás de mim, para ouvir a minha paródia. Foi aí que descobri que os vesgos não têm sentido de humor.
Para a cadeira de Saúde Pública, fui obrigado a redigir e apresentar um trabalho cujo tema seria ulteriormente sorteado. O tema que me calhou foi: "O papel dos animais na ajuda às pessoas com deficiências", ou coisa parecida. Estava, pois concerteza, predestinado ao falhanço. Eu, com toda a sensibilidade (já conhecida) para este tipo de assuntos, decidi não me dar por vencido, e desloquei-me a instituições como a ACAPO, a APPC, CERCI, etc, onde presenciei in loco à luta pela qual estas pessoas têm de passar todos os dias. Foi uma experiência que me marcou pela positiva, e penso até, uma experiência que me modificou permanentemente. Assim pensava eu. No dia da apresentação, perante uma plateia de professores e colegas, alguém proferiu a frase "...para saber como os animais ajudam os anormaizinhos". Esse alguém era, por coincidência, a mesma pessoa que tinha redigido o trabalho. Lá se foi a sensibilidade toda para o galheiro.
Agora, na Holanda, o risco de ser infeliz perante pessoas com deficiências é menor. Isto porque não me sinto suficientemente confortável para dizer as barbaridades do costume. Mas uma vez mais, constato que não me conheço o suficiente. Assim, quando me foi apresentada uma senhora que trabalhava no porto, perguntei a um dos colegas se ela andava à procura de alguma coisa, visto que estava constantemente a olhar para o chão. A resposta era simples: a senhora tinha um olho de vidro. Se calhar devia também referir neste post que, minutos antes, quando estava ao lado dela, pus-me também a olhar para o chão, para ver se a ajudava a encontrar o que quer que fosse que ela procurava.
Queria acabar este post com uma mensagem de esperança. Queria poder dizer que estou a mudar, ou pelo menos que estou a tentar. Mas não esperem muito de mim. A poça estará sempre lá (para eu meter a pata) e nesse campo, nunca desiludo. Mas sinto que estou um pouco melhor, e que já ajo com alguma providência. E há fortes probabilidades que da próxima vez, serei mais sensível. Tipo as probabilidades do próximo Papa ser um cigano homossexual da Palestina.
1 comentário:
A sensibilidade é um sentimento bonito...
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